CARTA III
Céu Azul, 09 de agosto de 1981.
Os gatos dormem. As nuvens seguem suas viagens lentamente. Sabe, amor, eu desconheço a primavera e as chuvas de verão. A vida sempre passou por mim sem que eu a sentisse. A árvore gigante plantada ao lado da minha casa fazia uma sombra belíssima, mas eu nunca percebi isso. Os pássaros faziam ninhos em seus galhos e cantavam. Fui objeto do acaso. Lidei com os vícios inoportunos e me corrompi. Não, amor, eu não fiz o que era errado. Discernir a verdade da mentira sempre foi muito difícil para mim, pois na minha ingenuidade plantei caroços de azeitona na fronha do meu travesseiro e esperei anos para que eles se tornassem árvores. Tive receios e anseios ao conhecer você. Pensei nas ninfas e fiz comparações da sua beleza com as delas. Conversei com a areia quente sobre a dominação da minha emoção em relação a razão. Cada encontro nosso algo parecia me dizer que você era uma espécie de relâmpago e tão-logo passaria. Mas o meu querer não me ouvia. Fiquei surda diante da sua imagem. E quando penso no seu sorriso tímido sinto vontade de chorar e regar o amor plantado em mim. A vida brincou de imitação comigo. Imitei até mesmo o barulho da chuva numa tarde quente de verão só para presentear você. Não sei se amei demais ou se foi pouco o que fiz em busca dos seus córregos. Não sei...não sei se corri demais e se esqueci de mim dentro de um barco de papel frágil perdido no mar. Arranquei espinhos da minha boca seca. Hoje, amor, sinto a vida. No som da natureza sossego os meus devaneios. Rasgo os verbos nas esquinas escuras das madrugadas. Estou deprimida, doença do século. Uma depressão tragada em cada suspiro da minha alma. Se choro? Sim. Choro querendo sentir a vida da minha infância perdida. Choro querendo sentir a vida com você. E com você eu queria um viver cheio de loucuras, emoções, bravuras, esperança e felicidade. Já não sou feliz, amor. Há muito esqueci meu sorriso à porta da tristeza. Bebo o veneno do arrependimento e alcoolizada saio de bar em bar contando a minha história. De tanto doer a vida me faz gemer com febre de saudades. Um abraço, Da sua poeta.
Rosângela Trajano
Enviado por Rosângela Trajano em 18/10/2019
|