Rosângela Trajano

Nasce uma estrela sempre que se escreve uma poesia

Textos

CARTA IV
Céu Azul, 03 de julho de 1999.

Meu anjo, hoje senti todas as coisas de todas as formas, jeitos, cores e perfumes. Não sei o que de mim há aqui neste instante, pois a lua crescente dentro de mim não muda mais de fase. Estou sem fósforos e a fogueira está apagada. Sou cética em relação ao eclipse do amor com o ódio. Creio nunca mais nos vermos. Quando passeávamos gostávamos de tomar sorvete de chocolate e contemplar as estrelas. Hoje as estrelas fugiram do céu e eu já não as vejo faz anos.
Meus dias vão passando lentamente. Ando nas ruas com os olhos fechados diante da multidão para não enxergar sorrisos e o vento. Plantei as margaridas no jardim de frente a nossa casa e elas estão lindas!
Faz algum tempo que não calço meias furadas. E meus olhos parecem dormir ao meio-dia.
Sou cavalos correndo estrada afora sem destino. Sou dragões mansos. O que antes me tornava um gigante partiu na véspera do meu encontro com a dignidade. Perdi-me em cinzas de lágrimas róseas. Fui. Não volto mais. Esta casa e os troços que nela estão não dizem mais nada.
Antes cada coisa parecia ter vida e conversava comigo. O piano é só silêncio. Até a chuva cai silenciosamente nas manhãs de outono.
Depois que você voou feito ave de rapina, fiquei meio tresloucada, meio ingrata, meio feroz e meio nada. Olho o relógio e já passam das quatro da madrugada. Em breve o dia vai amanhecer e eu não sei pra quê. Para mim os dias e as noites são como filmes que se repetem incessantemente. Meus óculos quebraram-se. Minha cadeira de rodas vive sozinha no meio da varanda. Triste é colher flores e não ter vasos. Triste é festejar idade nova com o mito de que há alegria. As coisas são retalhos das minhas virtudes. O chá das cinco está frio, pois espero por você para contarmos os fatos do dia.
Há pó no porta-retratos. Cheiro de mofo nas roupas que não preciso mais usar. As formalidades ficaram nos tempos passados. Óperas ganharam galhos de um desconhecido sem coisas e fatos. O desconhecido vegeta diante da Via Láctea. As coisas são colheitas doentes. O último cheiro está guardado no coração de Afrodite. Paro. O que vejo? Tintas. O artista morreu em triângulos retos.

Um abraço,
Da sua poeta.
Rosângela Trajano
Enviado por Rosângela Trajano em 18/10/2019


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