Rosângela Trajano

Nasce uma estrela sempre que se escreve uma poesia

Textos

O banho na cacimbinha do
rio das Quintas

 
Ah! Que saudades do tempo da minha infância! Se eu pudesse voltar alguns anos na minha vida pararia naquela tarde quente de verão tirando água da cacimbinha do rio das Quintas e molhando o meu corpo todo, eu menina buchuda que não conhecia os problemas e as dores da vida.
Durante a semana a gente ia à escola, e nos fins de semana as mulheres juntavam as roupas sujas para lavarem no rio das Quintas. Era aquela fila de mulher e crianças com trouxas de roupas na cabeça se dirigindo para o rio das Quintas. A gente cantava no caminho “lava, lava, lava, lavadeira quem te ensinou a lavar// foi, foi, foi, o peixinho do mar// esses meninos de hoje que atiram de baladeira mata todos os pássaros, mas não mata a lavadeira” Uma música que ficou nas minhas lembranças. Eu ia segurando a mão de Mãe Xiquinha, a minha bisavó de oitenta anos, os meus irmãos costumavam pegar na saia de mamãe, o mais novo chupando o dedo o do meio com cara de assustado. Eu carregava uma latinha de leite vazia e enferrujada para encher d’água e ficar brincando na cacimbinha.
Aquele era o meu melhor passeio de menina. Ir à cacimbinha era uma alegria enorme. Não cabia em mim. Quando a cacimba secava a gente ficava tudo com os olhos do tamanho do mundo esperando ela encher. Um banho na cacimbinha enquanto mamãe e Mãe Xiquinha lavavam as roupas era a nossa felicidade. Eu usava um vestido velhinho vermelho costurado por dona Joaquina que fazia vestidos lindos para mim, tinha chinelos de dedo e dois totós na cabeça que eu odiava, mas mamãe dizia que era para os cabelos não arrepiarem. Eu e a cacimbinha tínhamos um caso de amor que nunca acabou. Aquela água quando molhava o meu corpo parecia que me trazia poesia junto com ela e talvez por isso eu tenha aprendido a escrever tantas poesias para crianças ao longo desses meus anos como mulher.
A cacimbinha do rio das Quintas tinha água limpinha e cheirosa. Era uma fila de meninos para encherem as suas latinhas de água. Era uma fila de mulheres mandando a gente sair do meio para tirar água da cacimba e lavar as roupas sujas. A gente disputava com os adultos a água da cacimbinha. Eu aproveitava para dá banho nas minhas bonecas de plástico e lavar os seus vestidos. Mamãe me ensinou a lavar roupas no rio e eu toda orgulhosa colocava a roupa das bonecas para quarar em meio aquele sol forte do meio-dia.
A água da cacimbinha servia também para abastecer as nossas casas, pois não tínhamos água encanada. E os homens iam todas as noites pegar água com as suas latas grandes para encherem os tonéis. Eu ficava olhando o meu pai sair de casa com aquela lata nas mãos todo feliz e perguntava se podia ir com ele, a minha maior curiosidade naquele tempo era saber como dormia a cacimbinha. À noite, quando estava na minha rede, ficava a pensar se a água da cacimbinha dormia também e só voltava a jorrar pela manhã. Eu pensava cada coisa esquisita quando menina.
De repente, eu cresci. E o rio das Quintas junto com a cacimbinha foram enterrados e no seu lugar construíram uma fábrica. Hoje o que era um rio, água abundante, mato verde, andorinhas fazendo cocô nas roupas a quarar... hoje, só tem barulho de máquinas e a minha saudade do tempo em que a minha única preocupação era não molhar o chinelo de dedo que eu guardava dentro da bacia de lavar roupas de mamãe para só calçar quando voltasse para casa. Eis a minha cacimbinha do rio das Quintas que tantos sorrisos me deu e mamãe a me chamar quando o sol deitava para dormir: “vamos embora, Rosângela, amanhã você toma mais banho”.
Rosângela Trajano
Enviado por Rosângela Trajano em 10/01/2020


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