Era uma vez uma menina barriguda, nariz pequeno, olhinhos trocados e de pele da cor da noite... era uma vez... e acho que será para sempre. Pois bem, esta menina sentia-se muito sozinha e às vezes quando ela olhava para o tamanho do mundo, da sua janela, tomava um susto e se perguntava - Como pode alguém viver sem amigos num mundo tão grande? Sim, a menina não tinha mais amigos. De repente, assim do nada, eles se foram e nunca mais voltaram. Alguns precisaram ir para algum lugar por motivos de trabalhos, outros porque simplesmente quiseram ir morar longe, bem longe da menina, havia aqueles que sem dizer motivo algum se foram e ainda os que foram ingratos a machucando profundamente e deixando um vazio enorme dentro dela. A gente sente os vazios. Eles são meio parecidos com uma flor pisoteada ou um ninho de pássaros jogado ao chão. Estar sozinha no mundo transformou a vida daquela menina que gostava de cheirar sapinhos e desenhar casas com sóis perto delas. Não desenhava bem, mas para esquecer a solidão era uma coisa boa de se fazer. Assim como andar pelas ruas sem se dar conta de nada e esquecer que o tempo também é ingrato conosco vez ou outra. O tempo gosta de envelhecer os que sofrem e choram mais do que os que sorriem... ele é inimigo da dor e da saudade. Tinha dias que a menina pensava tanto num ou noutro amigo, mas tanto mesmo que a sua cabecinha queria explodir com tantas lembranças e o seu coração parecia parar de bater. Então, ela para matar as saudades de todos os seus amigos que nunca mais tivera notícias pensava neles com muita força, com bastante força, com a força de um gigante, mas com tanta força mesmo que todos eles onde estivessem sentiam o cheiro de um lírio assim do nada, era o seu pensamento chegando nos corações daqueles que partiram e esqueceram dela e eles nem sabiam que aquilo era coisa da menina que tinham deixado para trás há tanto tempo. Eles não se davam conta do quanto ela sofria sem os seus sorrisos, sem os seus passeios, sem as conversas tolas, sem as brincadeiras. Eles não sabiam que a cada dia a menina parecia sumir um pouco, primeiro foi o seu pé esquerdo que encolheu dois centímetros, depois foi a sua perna direita que diminuiu cinco centímetros, depois desapareceram os seus braços e ombros. Ah, como ela queria um amigo para poder sair por aí andando e andando ou quem sabe um ficar olhando para o outro sem dizer nada e para que dizer alguma coisa quando os corações falam tudo? A menina lembrava, com muitas saudades, do seu amigo poeta que foi morar do outro lado do oceano atlântico, da sua amiga que virou uma estrelinha, da sua amiga de olhos bem azuis e que tinha um sotaque diferente e dizia amá-la muito, mas de uma hora para a outra não quis mais ser a sua amiga. Tem gente meio esquisita que não compreende direito a gente, que não nos aceita com os nossos defeitos, que ao menor erro nosso vai embora e deixa de ser amigo da gente. Isso é tão esquisito! Tem gente que devia comprar amigos fabricados porque assim eles viriam sem nenhum defeito. Todo amigo tem algo que a gente não gosta. Isso é normal. Às vezes eles fazem coisas que nos desagradam, que nos machucam, mas nem por isso deixamos de ser amigos deles. A menina ficava pensando nos que não entendiam os seus erros e falhas, as suas dificuldades, os seus medos e angústias, a sua ansiedade, a sua impulsividade. Das coisas que fazia e que desagradavam os amigos a menina queria mudar, mudar o seu jeito de ser, mas não conseguia. Mudar exige paciência e tempo. Os amigos não tinham paciência. Ninguém mais tem tempo a perder. O tempo corre. As pessoas estão apressadas até mesmo para aguardar as mudanças de um amigo. Quando vierem as mudanças do amigo é possível que já estejamos longe o suficiente para nem lembrarmos mais dos seus defeitos que nos desagradavam tanto. Naquela tarde tristonha, o mundo parecia ter crescido mais ainda, assim o via a menina da sua janela. Uma lágriam caiu no chão seco, pois não chovia na sua cidade há mais de um século, o tempo que estava sozinha. A gente, às vezes, aumenta o tempo só pra ver se a dor diminui e tudo passa logo, não liguem se a menina é exagerada com a história de um século. Tenho a certeza de que vocês já aumentaram o tempo de alguma coisa também só para se sentir menos tristonho ou para alegrar uma ou outra pessoa. De forma que o mundo cresceu tanto que a menina aproveitou a ventania que passava, abriu a sua caixinha de lembranças e deixou que o vento levasse tudo o que os seus amigos lhe presentearam, um dia. Chorando, ela viu o vento levar a boneca de pano que o seu amigo poeta lhe deu de presente certa vez, o livro que a sua amiga ingrata lhe presenteou um dia, a folha de cajueiro da amiga que virou estrelinha e muitas outras coisas foram levadas pelo vento forte. Enquanto a tarde dava lugar para a noite e ela olhava para o mundo tão enorme! Quando o mundo é maior do que a gente só nos resta duas opções: procurarmos incessantemente o seu fim para quem sabe encontrarmos alguma resposta às nossas dúvidas ou nos tornarmos infinitos na grandiosidade dos nossos espíritos. Eu não sei você, leitor, mas escolho a segunda opção. A menina que não tinha mais nenhum amigo saiu da janela e foi sentar-se na sua velha poltrona. Era preciso colocar as lembranças para descansar um pouco. Era preciso fazer o vazio silenciar-se só por um instante. Era preciso adormecer a saudade só por um instante. Dia após dia, noite após noite, ouvia alguém bater à sua porta e corria para atender, mas não era ninguém, era coisa da sua cabeça, era coisa de quem vive sozinho e quer companhia nem que seja por um pequeno instante. E os instantes vão se transformando em dias, semanas, meses, anos, séculos... a gente vai morrendo um pouquinho a cada instante quando não tem amigos. Eu já morri mil vezes e conto hoje cinquenta e um anos. A menina será que ainda existe? E os seus amigos? E os lírios? E você? Rosângela Trajano
Enviado por Rosângela Trajano em 05/01/2023
Alterado em 05/01/2023 Copyright © 2023. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |